A
Polícia Civil de Jaquirana (RS) prendeu por compra de votos um filho do
prefeito reeleito, o coordenador da campanha e um vereador da cidade, de 4 mil
habitantes, no final do mês de outubro. Houve resistência de populares, que
ameaçavam entrar na delegacia para forçar a liberação dos presos. Não por falta
de provas da compra de votos mas sim, ao que tudo indica, porque para os
moradores que protestavam tais práticas fazem parte de sua cultura.
“Mississipi
em Chamas” retratou um fenômeno semelhante, o do combate a um crime (no caso, o
racismo) que já afrontava a consciência nacional, mas que ainda estava de tal
modo enraizado em culturas locais que os agentes federais é que eram vistos
como os inimigos, naquelas regiões. O clássico filme recebeu 7 indicações para
o Oscar em 1989, por coincidência o mesmo ano da emancipação de Jaquirana
(desmembrando-se de São Francisco de Paula), mas obviamente não há qualquer
relação entre os dois fatos. O drama de Mississipi envolvia a violenta KKK,
altamente organizada, enquanto os fatos de Jaquirana traduzem apenas uma triste
“tradição cultural” política que só se distingue de muitos outros municípios
pelo fato da Polícia Civil ter feito seu trabalho.
Jaquirana
merece entrar para a história não como sendo uma cidade corrupta, mas sim como
aquela em que a
Polícia Civil levou a sério a sua responsabilidade com a
cidadania, evitando que a lei eleitoral seja “letra morta” diante de uma
cultura clientelista espalhada pelo país. Em outros locais, em contraste,
ouvimos lamentações de que as autoridades de vários níveis e esferas, desde as
Polícias até o Ministério Público, estão tão “absortas” na cultura local a
ponto de não identificarem tais tipos de crimes, como quem não quer se incomodar
com – ou ainda pior, como quem faz parte diretamente dos – poderes locais que
se locupletam com o clientelismo.
Tão
generalizado esse tipo de práticas, tão comum em pleitos municipais, que fica a
dúvida se representam a vontade da maioria da população, justificando o ditado
segundo o qual “cada povo tem o governo que merece”. Mas os que “não merecem”
governos corruptos ficam sem ter a quem recorrer: em muitos lugares, são
pessoas sem voz, sem representantes, sem cidadania plena, entregues a seus sentimentos
de impotência diante do mar de lama e da conivência de tantos.
Os
federais retratados em “Mississipi em Chamas” (e aqui, a título de exemplo, não
importa se o filme é meramente alegórico ou se foi fiel aos fatos) e a Polícia
Civil de Jaquirana representam o braço da Lei – aqui em sua expressão maior, de
legítima força do processo civilizatório – que se impõe a culturas que queremos
deixar para trás, na História. A análise socioeconômica do mundo atual inclui
questionar novas formas de “escravidão” disfarçadas, bem como o imperialismo
comercial, mas nem isso permite concluirmos que não foi um avanço o fim da
escravidão ou do colonialismo de séculos passados. Que Jaquirana, assim como
Mississipi e tantos outros exemplos de conflitos de intenso teor moral, seja um
marco de um processo evolutivo e não apenas um fato ocasional.
* Sul21
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